sexta-feira, 4 de julho de 2008

DIÁRIO DE BORDO - EVENTOS ESPECIAIS FIT BH 2008

– 03 DE JULHO DE 2008, 4 PARA O FIM DA FESTA

NOTAS SOBRE DRAMATURGIA

Marcelo Castilho Avellar

Em uma das mesas do Fórum Latino-Americano, Fernando Bonassi mencionou a coincidência entre o crescimento do teatro de grupo e o fato de que os grupos de teatro brasileiros, cada vez mais, têm dramaturgos como integrantes de suas equipes. O Projeto Encontros não foge à regra. No discurso das três companhias que nele apresentaram seus processos de criação, a dramaturgia própria, surgida não como literatura, mas como resultado da investigação cênica, foi a tônica. Cada um apresentou caminho próprio neste rumo, mas todos chegaram à conclusão da inviabilidade de construção de uma pesquisa específica do grupo sem a criação de dramaturgia igualmente específica.

Parte do problema referente ao tema está, exatamente, no fato de que as experiências singulares no setor costumam ficar restritas às salas de ensaio – chega ao público apenas o resultado delas, nos espetáculos. Felizmente, aparece a cada dia mais gente disposta a debater o assunto ou a publicar sobre ele. Quando o Grupo Galpão, por exemplo, decidiu publicar os textos de seus espetáculos (como foram ao palco, não como eram no início dos ensaios), acrescentou, em cada volume, um depoimento sobre o caminho percorrido até aquele texto.

Diretamente ligada a esta questão de uma dramaturgia dos grupos (em oposição a uma dramaturgia de escritores de fora os grupos) está o tema da “edição” dos espetáculos. O conceito, anteriormente empregado apenas para o cinema, vem da idéia de que os grupos criam material através de experimentação, e depois precisam decidir o que integra ou não o espetáculo, e em que medida. É interessante notar que tal procedimento surge até mesmo quando existe um texto anterior que serve de roteiro ao espetáculo. A Cia. Luna Lunera, por exemplo, criou Aqueles dois a partir de um conto de Caio Fernando Abreu. Mas a organização do espetáculo ocorreu a partir da edição do material cênico construído sobre ele, ou melhor, proposto a ele.


NOTAS SOBRE O FÓRUM LATINO-AMERICANO
Duas barreiras acabam dificultando uma comunicação mais profunda no fórum que debate questões ligadas ao teatro na América Latina – e nenhuma delas passa pela língua.

A primeira é o fato de que somos vizinhos que não se conhecem. Ou, pelo menos, a América de língua portuguesa e a América de língua espanhola são vizinhas que não se conhecem. Para a próxima edição, seria legal algo como uma espécie de pré-formulário contendo um roteiro de leitura – se fôssemos fornecer a um estrangeiro um guia de fatos e obras que gostaríamos que ele conhecesse para tentar nos entender, qual seria? E o que deveríamos saber sobre Bolívia e Peru, por exemplo, para que pudéssemos, se não falar a mesma língua, pelo menos conseguir uma tradução simultânea?

O Teatro de Los Andes, boliviano, é bom exemplo de como esta tradução só pode ser feita através da arte. Através dos espetáculos que vem trazendo ao FIT ao longo dos anos, muitos belo-horizontinos conhecem, hoje, não apenas fatos da história da Bolívia, mas também o sentimento dos bolivianos frente a eles – Em um sol amarelo, memórias de um terremoto, que o grupo apresenta na versão 2008 do festival, é exemplar neste sentido.

É possível que a redenção da América Latina, qualquer que seja, só seja possível através da arte.

A segunda é o fato de que freqüentemente as questões locais se sobrepõem às continentais. As duas primeiras mesas do fórum, em diversos momentos, perderam parte de seu caráter quando começaram a se concentrar nos modelos brasileiros para problemas e soluções.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

DIÁRIO DE BORDO - EVENTOS ESPECIAIS FIT BH 2008

DIA 7, 02 DE JULHO DE 2008

ORGULHO DE PARTICIPAR DO FIT
Querem coisa mais cosmopolita e primeiro-mundista, num país em que 90% dos filmes exibidos são falados em inglês, que participar de um evento em que o espanhol é mais falado que o português – como o Fórum de Teatro Latino-Americano?

FALSOS CONSENSOS
Em linhas gerais, uma estratégia de construção de consenso é aquela situação em que alguém finge apresentar ao público uma escolha, quando o verdadeiro debate deveria ser sobre os pressupostos subjacentes a ela. Volta e meia, conscientemente ou não, ela é usada nos debates do FIT. Quando Eid Ribeiro, um dos diretores do festival, pergunta no Fórum se é o grupo ou a escola o espaço privilegiado da formação para o teatro, por exemplo, ele induz a uma resosta que exclui a possibilidade de que ambos sejam equivalentes.

A resposta de Fernando Mencarelli (UFMG) sofre de vício semelhante. Ele afirma que a questão apresentada por Eid será superada na medida em que os bons criadores de teatro (ou seja, agitadores dos grupos) ocuparem as posições que merecem nas escolas, como vem ocorrendo em muitos cursos superiores de teatro no Brasil. Mencarelli esqueceu, naquele instante, que a própria Lei das Diretrizes e Bases da Educação tem normas que dificultam ou impossibilitam o acesso dos profissionais autodidatas aos postos de professores.

Na mesma mesa de debates do Fórum, Rômulo Avelar, em sua fala sobre produção cultural, critica as leis de incentivo, mas afirma que elas trouxeram, entre outros benefícios, a profissionalização das artes. Há, nessa fala, um pressuposto oculto: a superioridade intrínseca de um modo “profissional” de produzir sobre um modo “amador” – que esconde menos uma questão ontológica que uma questão ideológica.

E não custa perguntar: será que a tal profissionalização não teria surgido simplesmente por causa do aumento dos recursos destinados à cultura, e ocorreria em qualquer contexto onde ocorresse este fenômeno – inclusive políticas culturais sem leis de incentivo, mas com investimento direto maciço do poder público no setor?


A FORÇA DAS REPRESENTAÇÕES
Cada vez que alguém menciona a possibilidade de alternativa de política cultural às leis de incentivo, acaba se referindo à lei de fomento ao teatro do estado de São Paulo. Como se não houvesse uma coleção de programas análogos (mesmo se freqüentemente com menor volume de recursos) espalhados pelo país, da Funarte (órgão federal) até administrações municipais. São Paulo capitalizou melhor que os outros entes federados sua distribuição direta de recursos orçamentários.


TODA UNANIMIDADE É PERIGOSA
No Projeto Encontros, a Cia. Brasileira de Teatro descreve em sua fala e demonstra em seus exercícios uma paixão pelo jogo de expressão entre voz e palavra – isso num momento em que a estrondosa maioria da pesquisa de teatro no Brasil caminha por trilhas centradas no corpo ou no espaço. A pesquisa da CBT poderia ajudar a reabrir um mercado que praticamente desapareceu: o radioteatro.


DA SÉRIE “FRASE DO DIA”
“Acredito que nossos alunos serão melhores professores do que nós”, Fernando Mencarelli, num rasgo de confiança na força das escolas de teatro.


DA SÉRIE “LIÇÕES PARA NÃO ESQUECER”
Miguel Rubio (Grupo Yuyachkani, Peru) fala sobre o quanto a televisão vem interferindo, ao longo de sua história, na formação de atores e na interpretação teatral em seu país e nos vizinhos. Talvez seja hora de nós, profissionais do setor começarmos a pesquisar, de maneira mais sistemática, esta relação entre teatro e TV – afinal, ignorar o rato não salva a despensa.


DA SÉRIE “NOTAS SOBRE DISCIPLINAS QUE DEVERÍAMOS ESTUDAR”
Depois da Cia. Clara (MG), é a Companhia Brasileira de Teatro (PR) que usa a palavra “editar” como etapa possível do processo de criação de um espetáculo. Ao longo de toda a história do cinema, os profissionais desta arte trataram a edição como “específico fílmico”, já que seria o único processo em sua criação que não seria dividido com outras artes. O teatro contemporâneo se encarrega de desmistificar essa aparente verdade. E o século de debates sobre edição no cinema poderia ajudar os grupos de teatro que resolvem investir nessa idéia.

terça-feira, 1 de julho de 2008

DIÁRIO DE BORDO - EVENTOS ESPECIAIS FIT-BH/2008

DIA 6, 01 DE JULHO DE 2008

NOTAS SOBRE DISCIPLINAS QUE DEVERÍAMOS ESTUDAR

Marcelo Castilho Avellar
Durante a demonstração de processo da Cia. Clara, no Projeto Encontros, ficou mais uma vez evidente que temos mais facilidade em demonstrar nossos métodos de treinamento que nossos métodos de criação. Freqüentemente, fica explícito o fato de que, eventualmente, começcamos de algum lugar próximo do zero raciocínios que outros campos do conhecimento já vem desenvolvendo há algum tempo.

Bom exemplo disso é a dificuldade que Anderson Aníbal, diretor da Cia. Clara, tem para explicar alguns conceitos que são fundamentais para a criação dos espetáculos do grupo, como a “imagem recorrente”, que funciona como tijolo a ser usado em diversos momentos, não como estrutura rígida, mas como unidade plástica que se transforma a cada momento, de acordo com o contexto da cena. Ou a “ação-comentário”, estrutura análoga na atuação. O discurso de Anderson é nitidamente aparentado com o discurso da ópera sobre o leitmotiv (literalmente, “motivo condutor”). É possível, então, que boa parte do debate que ocorreu, ao longo do último século e meio, sobre o leitmotiv, possa ser incorporado ao nosso debate sobre imagens recorrentes.

Da mesma maneira, a dificuldade em separar conceitos como “movimento” e “ação” poderia eventualmente ser resolvida se os profissionais de teatro se debruçassem um pouco sobre lógica matemática para investigar como ficam seus enunciados em termos de lógicas proposicionais e lógicas de primeira e segunda ordem, ou qual é o status de decidibilidade deles em função de pressupostos usualmente utilizados na criação.


FRASE DO DIA
“Se a gente interpreta, é como se mastigasse a comida do público” – Anderson Aníbal, defendendo que atores devem atuar, interpretar é tarefa do público.

Boa referência para avaliar esta idéia se levada às últimas conseqüências são os filmes de Jean-Luc Godard. É um mestre em descobrir que aquilo que começa antes da ação dramática ou depois dela é tão importante quanto a própria – ou mais. Seus filmes freqüentemente mostram para os espectadores aqueles instantes, no início ou no final do plano, que seriam cortados nas obras de todos os outros autores.


DA SÉRIE “LIÇÕES PARA NÃO ESQUECER”

Na abertura do Fórum de Teatro Latino-americano, Fernando Bonassi se refere ao fato de que o trabalho dos dramaturgos cresce em importância no Brasil. Hoje, segundo ele, a maioria dos grupos teatrais importantes de São Paulo tem dramaturgos em seus elencos. Uma referência histórica importante é a lembrança de que na época de Shakespeare, Lope de Vega ou Molière, dramaturgos e intérpretes estavam juntos, nos mesmos espaços e nas mesmas companhias. Por coincidência, foi a “era de ouro” do teatro como grande arte popular, num fenômeno análogo à febre de ópera no século 19 ou ao apogeu do cinema no início do século 20.

Quem acabou com a lua-de-mel entre companhias e dramaturgos foi a revolução burguesa. Que disfarçou, no teatro, sua defesa da divisão do trabalho com a idéia da individualidade do artista.

Outra fala de Bonassi nos lembra de uma incômoda contradição da produção cultural brasileira: o fato de que seu núcleo industrial (Rede Globo e adjacências) teria se apropriado dos temas e das imagens de grande conteúdo social. Pode ser hora de reler, em todas as nossas escolas de teatro e todos os nossos grupos cênicos, o artigo Abjurei a Trilogia da Vida, de Pier Paolo Pasolini, que discutia momento análogo na Itália: o instante em que os territórios de uma arte de contestação se tornaram territórios de uma cultura de consumo.

Sobre esse tema, vale lembrar uma discussão que surgiu há poucos dias, durante a Oficina da Cena: o fato de que cidades como São Paulo ou Belo Horizonte têm uma cultura de teatro de grupo muito mais forte que o Rio de Janeiro – como se a presença da Globo, estabelecida no Rio como sonho e meta de boa parte dos jovens artistas, inibisse o desenvolvimento dos grupos em grande escala.


COMO APROXIMAR REALIDADES HETEROGÊNEAS

Aristides Vargas, do grupo Malayerba (Equador) expõe um dos contrastes na relação latino-americana com a dramaturgia. Enquanto em seu país a publicação de peças de teatro é, quase sempre, iniciativa individual, dos próprios autores, em Cuba ela integra políticas públicas para o teatro ou a indústria editorial.